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(01/06) O ateu mais cristão que conheço

Na roda de conversa regada a cervejas que eu e um grupo de amigos mantemos nas noites das sextas-feiras, um deles, que conheço há mais de 30 anos, diz que é ateu. E isso faz bom tempo. Mas, no último dia útil da semana passada, foi incomum o esforço dele em afirmar que não acredita na existência de qualquer divindade, que não possui crenças religiosas ou espirituais e considera não haver evidências suficientes para sustentar a veracidade de um ser supremo.


Instado à discussão por um motivo etílico que nenhum de nós se lembra qual foi, expôs durante tempo significativo o seu entendimento sobre o Velho e o Novo Testamento, o Evangelho, o Cristo. Inteligente que é, contou com atenção de todos. De minha parte, por um momento, cheguei a compará-lo a Raimundo Silva, protagonista do romance "Memorial do Convento" (1982), escrito pelo autor português José Saramago.

Na obra do ganhador do prêmio Nobel de Literatura de 1998, Silva é um revisor de textos contratado para trabalhar na corte portuguesa durante o século XVIII. Ele é retratado como um homem cético e descrente, questionando a existência de Deus e a validade das instituições religiosas. Suas principais características incluem sua perspectiva crítica em relação à religião e sua busca por liberdade intelectual. O personagem é pensativo e reflexivo, cujo questionamento das crenças tradicionais o coloca em conflito com a sociedade e as autoridades eclesiásticas. Raimundo Silva desempenha um papel significativo ao representar a voz da descrença e do questionamento no contexto da época em que a Igreja Católica tinha uma forte influência na sociedade.

Porém, à medida que o debate se desenvolvia, notei nele entusiasmo ao falar da Bíblia e de temas cristãos, o que não percebo em nenhum outro ateu daqueles com quem já mantive ou mantenho contato, costumeiramente racionais e práticos. E Raimundo Silva saiu do meu ambiente mental dando lugar a Benta, de "O Tronco do Ipê" (1871), de José de Alencar, mulher virtuosa, profundamente religiosa e devota, que vive em uma comunidade do interior do Brasil no século XIX. A sua fé cristã é um dos aspectos centrais da sua personalidade, guiando as suas ações e decisões ao longo da história.

De Raimundo Silva a Benta, que me perdoe o meu dileto amigo, mas naquela sexta-feira a sua argumentação e a forma da exposição não enfatizaram a importância da liberdade de pensamento, questionamento e análise crítica. Em vez da ausência de crença em qualquer deus, 
me deram uma quase certeza de que se trata do ateu mais cristão que conheço.

*Marcelo Teixeira é jornalista e integrante da Academia Araçatubense de Letras (AAL)

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